O
aniversário dos 500 anos da Reforma Protestante ocorrerá em 31 de outubro de
2017 e à medida que o evento se aproxima, seminários, congressos, documentários
e uma safra de excelentes livros começam a ser produzidos e publicados. No
Brasil, surge pela primeira vez traduzida em nosso português, a obra “Martinho
Lutero, um destino”, do notável historiador francês Lucien Febvre. O livro foi
publicado em 1928, com traduções para o inglês, espanhol, português lusitano,
mas apenas agora, temos uma edição brasileira. Tal atraso é ainda mais absurdo se
pensarmos que foi uma obra fundamental para a renovação tanto dos estudos sobre
religião, quanto sobre a própria história. A biografia de Lutero, por Febvre, foi
precursora da renovação dos estudos históricos pela célebre escola dos Annales,
procurando compreender o mundo em que Lutero estava inserido, a forma como ele
compreendia o seu tempo e as questões que afetavam a Igreja. Renovava assim, o
trabalho do historiador, pois não era mais a velha biografia, centrada em datas
e eventos. Fazia o mesmo com a análise religiosa, pois nem era uma hagiografia
nem se destinava a condenar o reformador, além de não tratar a religião como
‘ópio’ nem como algo ‘irracional fadado a desaparecer’.
Febvre
escapou, assim, dos dois grandes modelos de estudo que cercavam a religião entre
duas armadilhas. Ou a religião era o ‘ópio do povo’, um aspecto do mundo
ideológico, reflexo da realidade material, ou era uma etapa primitiva do
pensamento humano, destinada inexoravelmente a desaparecer com o avanço da
razão e da sociedade moderna e industrial. Febvre analisou o século 16 de
Lutero buscando as lógicas internas de funcionamento daquela época, sem considerá-la
uma etapa que seria vencida e superada no futuro pelo racionalismo moderno.
Procurando conhecer o que chamava de ‘utensilagem [ou utensílios] mentais’, o
autor procurou compreender a forma de Lutero ver o seu mundo e posicionar-se
diante dele. Seu interesse pela mentalidade do homem moderno já havia produzido
um grandioso estudo sobre o francês Rabelais, contemporâneo de Lutero e
igualmente crítico do mundo religioso da época. Lucien Febvre trilhava um
caminho novo, diferente daquele feito por muitos que se afirmavam marxistas ou weberianos.
A
circulação da edição brasileira da biografia de Lutero, portanto, deverá
ensejar boas provocações entre os curiosos e estudantes da história das
religiões, conhecendo um clássico escrito por um dos mais respeitados
historiadores do século 20. Um livro sem parvoíces do tipo ‘a religião é o ópio
do povo’ ou como ‘uma forma mítica de explicar o mundo que desaparecerá com a
expansão da ciência’, e que, tampouco toma a Reforma como uma ruptura abrupta,
um rompimento espetacular com o mundo medieval. Pelo contrário, somos surpreendidos
pela busca da compreensão dos modos de pensar e de sentir do homem que viveu em
um mundo em transição, que foi Lutero, que titubeou em diversos momentos, antes
de definir-se como pensador seguro, sagaz e maduro, articulador de uma nova
forma de exercício da fé cristã. Uma análise interdisciplinar que busca se
aproximar da mentalidade dos homens que viveram o início dos tempos modernos.
Este é, sem dúvida, um excelente presente para o aniversário da Reforma.
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